No dia 9 de janeiro um homem saiu ensandecido pelas ruas de São Paulo, atirando a esmo, roubando carros, batendo em outros veículos etc.
Ele está foragido.
Sua família, segundo reportagem da Folha de São Paulo, pediu para que seu nome não fosse divulgado, pois diz ter certeza que ele foi sequestrado e que corre risco de vida.
Porém, vários meios de comunicação já divulgaram seu nome, Michel Goldfarb Costa, e sua foto. Michel é artista plástico e administrador de empresas.
É interessante ler os comentários da reportagem da Folha. Revoltados, muitos leitores colocaram lá o nome do autor dos eventos e o link para a foto dele. Segundo outros comentários, o jornal estaria apagando comentários porque Michel faz parte de uma família influente.
Há também uma grande indignação com uma hipótese levantada: Michel estaria em surto psicótico. Um exemplo de dezenas de comentários muito semelhantes:
É compreensível o sentimento dos comentaristas. Mas, como psiquiatra, tenho de fazer algumas considerações que vão contra todos estes comentários.
Parece-me óbvio que Michel estava em surto (não necessariamente psicótico), transtornado. O relato completo da sequência de crimes que cometeu demonstra isto. Não havia um propósito evidente. Não queria roubar, não queria sair matando. Não teve o comportamento típico de um atirador sequencial.
Um dia de fúria
Quase todas as mídias falaram que Michel Goldfarb Costa estava em “Um dia de fúria”, em referência ao clássico filme estrelado por Michael Douglas. Mas quem viu o filme há de se lembrar que até mesmo o personagem de Michael Douglas parecia menos descontrolado, menos confuso que Michel.
O que de fato aconteceu com Michel? Não é possível saber, por enquanto. Mas as hipóteses não são muitas: um surto desencadeado por estresse agudo (relata-se que estava desempregado); um surto realmente psicótico (que não necessita de motivos para aparecer); intoxicação por drogas; ou até mesmo um tipo incomum de epilepsia… É prudente que sejam feitos também uma ressonância cerebral – um insuspeito tumor cerebral pode ser a causa de tudo. Quando Michel for encontrado (se não se matar antes), provavelmente passará por uma Junta Médica e os psiquiatras forenses quase certamente investigarão estas hipóteses.
Não porque ele seja rico, bilionário ou mendigo. Simplesmente porque é o que, psiquiatricamente, parece ter ocorrido a Michel.
Impunidade?
É não é por ser rico ou pobre que ele sairá impune. Se Michel Goldfarb Costa não for condenado e preso, em boa parte será porque a lei brasileira diz, no artigo 26 do Código Penal, que “É isento de pena o agente que, por doença mental, era, ao tempo da ação, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”
Se os peritos considerarem que um eventual transtorno causou apenas uma redução de sua capacidade de entender o que fazia, ou de controlar-se, o acusado ainda pode ser condenado, mas terá a pena reduzida.
“Um absurdo!”, “Impunidade!”, bradarão muitos. Pelo contrário. Se tudo correr de forma correta, sem influência de dinheiro, família poderosa etc., justiça terá sido feita. Isto não significa que Michel sairia impune. É possível, por exemplo, que lhe seja imposta uma medida de segurança, isto é, que tenha, digamos, que passar um tempo internado. Seria justo. Doentes têm de ser tratados, e não presos. Mesmo que o povo queira linchá-lo.
Sabemos que no Brasil a Justiça é muito boazinha. Mas em casos como este de Michel, que tomam grandes proporções, não concordo de forma alguma com o uso da palavra impunidade.
Uso outro caso como exemplo: Guilherme de Pádua, então ator da Globo, que foi acusado de matar a atriz Daniela Perez em 1992. Está solto, faceiro. Guilherme era jovem, bonito, promessa na Globo. Sem o crime, hoje possivelmente estaria rico, famoso pelos motivos corretos, querido pelo povo. Hoje não tem nada disto. Então, como dizer que não perdeu muito? Não foi a Justiça propriamente dita que lhe tirou tudo, muito menos a Justiça Divina, mas a própria sociedade, dando-lhe a consequência plena de seus atos.
O casal Nardoni poderá andar com tranquilidade pelas ruas quando em liberdade? O caso do jornalista Pimenta Neves, que matou a namorada, é humilhante para Justiça, mas ele passou a última década recluso em casa – sem trabalho, sem vida social… Como dizer que não perdeu quase tudo? Susane von Richthofen, que matou os pais, terá uma vida normal quando sair da cadeia?
Michel Goldfarb Costa, independente do que a Justiça lhe dê, também ficará marcado. Possivelmente, ao contrário dos casos acima, sem ter culpa nenhuma no cartório. Que me perdoe o senso comum, mas isto sim seria injusto.
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Leitura recomendada: Sobre o motorista que passou mal, bateu o ônibus e foi linchado, de Rosana Hermann.
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ATUALIZAÇÃO:
11/01/12 – Michel Goldfarb Costa se entregou e deu explicações detalhadas – vejaaqui. A história que conta é condizente com um surto paranóico. O que há de atípico, psiquiatricamente, é a recuperação rápida e o insight (autocrítica) demonstrados por Michel. Podem ocorrer? Podem. Mas são atípicos.
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